Realidade Fractal
Posse, domínio, poder, opressão, despertar, destruição e retomada.
A humanidade, desde o momento em que decidiu colocar cercas em pedaços de terra, repete o mesmo círculo. Esse gesto inaugural — como as cercas que delimitam casas, bairros, cidades, estados, países e continentes — estabeleceu não apenas barreiras físicas, mas um limite mental. Um contorno invisível que aprisiona cada ser humano. A humanidade ergueu um muro intransponível e nele se encerrou, como se a realidade só pudesse existir sob a lógica do domínio. E do micro ao macrocosmo, vemos a mesma silhueta estrutural — um padrão fractal, auto-semelhante, que se replica independentemente da escala ou da distância do observador.
Esse padrão se reproduz infinitamente, no espaço e no tempo. A arena do domínio é o mundo, mas também cada casa, cada mente, cada relação. Nietzsche falou da moral dos fortes e da moral dos escravos. Mas o padrão é tão profundo que nem mesmo é necessário um senhor para que alguém se ponha na posição de escravo: ele já carrega o molde dentro de si. Essa estrutura se repete e se reconstrói de geração em geração, assumindo novas formas e convoluindo sobre si mesma. Ela está presente na relação entre pai e filho, entre trabalhador e empregador, entre cidadão e Estado, entre potências e países sujeitos ao domínio de outras. Sempre há senhores e escravos. Não de modo simétrico, mas em violenta desproporção.
E todas as vezes em que a humanidade, por meio de guerras ou revoluções, tentou romper esse ciclo, o que houve foi apenas uma troca de papéis: o império pela igreja, o feudalismo pelo capitalismo, a ditadura dos ricos pela ditadura do proletariado. O sonho do escravo nunca foi a liberdade — seu desejo é tornar-se o senhor. Eis o eterno retorno nietzschiano em sua forma mais crua: a repetição cega da forma, sob a ilusão de transformação.
Como nos fractais, os padrões se repetem com pequenas variações. Fissuras minúsculas emergem, ganham protagonismo, tensionam a estrutura, ameaçam a continuidade — até que, subitamente, tudo retorna à forma anterior. Nossos modos de existência às vezes parecem ensaiar uma ruptura com o algoritmo da espécie. Surge algo novo, diferente de tudo. Alimentamos a esperança. Mas logo percebemos que nunca houve novo padrão: apenas a própria estrutura criando tensões superficiais para acomodar o caos do momento histórico. E, mais uma vez, os escravos tornam-se senhores. Apenas alguns. Nunca todos.
A questão filosófica, então, se impõe: como transcender os grilhões históricos da humanidade? É possível dar um salto ontológico e viver fora desse padrão opressivo? Há lugar para uma humanidade além da geometria que nos aprisiona — não para dominar, mas para simplesmente existir com liberdade?
Assim como os navegadores dos séculos XV e XVI partiram do velho mundo rumo ao desconhecido, também precisaremos de coragem para desbravar um universo além do que conhecemos. Mas há uma armadilha nessa jornada: se eu partir levando minha bagagem — minha própria fractalidade — não terei ultrapassado a fronteira, apenas aberto um novo ramo da mesma estrutura. Os navegadores do velho mundo levaram consigo o desejo ancestral de poder, e contaminaram o novo mundo com o mesmo padrão.
Por isso, antes de navegar, é preciso tentar ver-se fora da moral de senhores e escravos. Ser, ainda que provisoriamente, uma página em branco em termos morais — não negando nossa história, mas suspendendo nosso julgamento, como Descartes ao buscar sua verdade mais fundamental.
O grande problema é que não podemos usar nossos olhos para isso. É como tentar ver o próprio rosto sem espelho. A estrutura que molda nossa realidade está nas nossas vísceras. Estamos dentro dela — e, por isso, não podemos percebê-la com as ferramentas que ela mesma nos deu. Mas há outros caminhos. Podemos intuí-la, sentir suas dobras, espiar pelas frestas, esgueirar-nos por entre rachaduras, reunir fragmentos de algo maior.
Os primeiros navegadores desenharam seus mapas de forma intuitiva, com instrumentos rudimentares. Eram imprecisos — mas mesmo assim serviram como espelhos turvos do mundo, ajudando outros a traçar rotas mais seguras. Assim também será conosco. Para enxergar além do padrão, precisaremos da intuição, de todos os nossos sentidos — e da razão. Será preciso reunir muitas peças.
Para ver seu rosto sem um espelho, você pode usar as mãos. Pode medir a forma do nariz, a espessura dos lábios, a curvatura da maçã do rosto. Pode observar seus braços, inferir a cor da pele, deslizar os dedos pelo contorno dos olhos. Reunindo pistas, você compõe uma imagem aproximada de si mesmo — um modelo intuitivo do que é invisível. Esse mesmo processo pode nos ajudar a delinear a forma do padrão que nos estrutura. Ainda que incompleto e imperfeito, será o primeiro esboço de uma outra possibilidade.
A estrutura da condenação
Com esse exercício de inferir o que nos dá estrutura, nos deparamos com a nossa condição histórica. Nossa estrutura moral e nossos arquétipos são uma construção cultural profundamente enraizada nos recônditos mais remotos da história humana, e remonta às narrativas dos primeiros deuses das primeiras civilizações. Aqui começamos a ver um tipo de marca, impressão digital.
Se existe um algoritmo que estabelece as condições em que operam nossas realidades fractais, uma componente fundamental é a história humana. Não a história dos fatos, mas a história que é contada pelas narrativas dos dominadores e pelos lamentos dos oprimidos.
Ao longo de toda a história humana, há um elemento onipresente que opera como estrutura profunda da nossa realidade social: a religião. Não como fé pessoal, mas como sistema simbólico e institucionalizado, ela é o código-fonte da nossa fractalidade civilizatória. Tudo começa e termina nos mitos — narrativas fundadoras que definem não apenas o sentido da vida, mas o lugar de cada um no mundo.
As religiões moldaram a gramática moral de todos os sistemas verticais: o Estado, o trabalho, os mercados, a família — todos carregam, em sua arquitetura, a assinatura teológica da hierarquia. A religião é a tecnologia de opressão por excelência: ela confere legitimidade sagrada aos senhores da terra e exige das massas a mansidão, a obediência e o medo.
Seu poder reside na instalação de um firmware psíquico, que transforma homens e mulheres em autômatos morais — seres moldados pela culpa, condicionados pelo temor e treinados para amar sua própria submissão. Por trás de cada cadeia, há uma cruz. Por trás de cada trono, um altar.
Não há civilização desigual que não tenha se apoiado sobre um mito. E não há mito duradouro que não tenha sido santificado por uma religião. Ela é o útero da dominação, e seu túmulo também. A igreja, nesse contexto, é:
1. A primeira escola da obediência, onde se aprende que há um poder maior que te vê, te julga, e pune até seus pensamentos;
2. A fábrica original da culpa, que internaliza o controle;
3. A legitimação da hierarquia, onde existe um clero que interpreta o divino e um povo que deve se submeter à sua intermediação;
4. A matriz moral de toda estrutura verticalizada, pois seus modelos (pastor e rebanho, pai e filho, senhor e servo) ecoam em todas as demais instituições: família, Estado, empresa;
5. A narrativa que promete justiça pós-morte, justificando o sofrimento atual como um preço sagrado pela salvação futura — isto é, como salário simbólico da miséria;
6. O dispositivo que transforma a revolta em pecado, desarmando o desejo de emancipação.
Sob essa ótica, o mundo só poderá avançar — não apenas tecnicamente, mas ontologicamente — no instante em que deixarmos de acreditar que a submissão é uma virtude. A igreja, enquanto estrutura, é a usina onde essa ideia é santificada, reproduzida e disseminada como dogma. O avanço civilizacional, em termos humanos e éticos, só será possível no dia em que a última igreja fechar suas portas — não por repressão externa, mas por esvaziamento interno, quando a humanidade não mais precisar delegar sua autonomia a intermediários do sagrado.
A religião, enquanto tecnologia institucional, sequestra um dos traços mais nobres da experiência humana — a fé — e a converte numa caricatura. Infantiliza-a, aprisiona-a em dogmas e a reduz a um teatro grotesco, esteticamente disforme e logicamente insustentável. Aquilo que deveria ser força interior — propulsora da coragem, da criação e do salto rumo ao desconhecido — é pervertido em fraqueza domesticada, em temor servil.
A religião desenha a silhueta de um Deus que se replica em todas as instâncias de poder: no líder político, no pai autoritário, no senhor de engenho, no CEO moderno. Transforma a fé em mecanismo de submissão, deslocando-a da transcendência criadora para a adoração do ídolo fálico, do grotesco e do obsceno.
É nesse movimento que a potência humana é dissolvida — transformada em penitência, alienação e espetáculo. E, enquanto isso não for superado, qualquer tentativa de emancipação será apenas a repetição do mesmo fractal, em nova escala.
Uma fé sem mitos
Ao traçarmos a distinção entre fé — um atributo essencial da natureza humana — e crença — uma tecnologia institucional de significação da realidade — começamos a delinear a possibilidade de um mundo pós-fractal. A fé é potência interior, impulso para o desconhecido, desejo de sentido que transcende o imediato. As crenças, por outro lado, são formas moldadas, doutrinas empacotadas, instrumentos de controle disfarçados de sentido.
É preciso, portanto, emancipar a fé das crenças. Libertar esse núcleo vital da experiência humana das amarras simbólicas que a infantilizam, distorcem e utilizam como alavanca de sujeição. Somente assim poderemos reorientar as bússolas internas da humanidade para uma moral que não derive do medo, da culpa ou da obediência, mas que seja orientada pela ampliação da potência de agir — como queria Espinosa.
Devemos superar a moral dos senhores e dos escravos — aquela que eterniza papéis e alimenta o ciclo da dominação — e inaugurar uma moral da plenitude humana: uma ética que reconcilie o ser humano com sua fé, mas sem mitos infantilizantes, sem os teatros grotescos de pastores abusivos, sem o céu prometido como prêmio pós-morte por uma vida submissa.
A nova moral não se apoiará em ídolos, mas em fundamentos internos: a liberdade como caminho, o conhecimento como força, e a transcendência como experiência viva — e não como paraíso ilusório. Uma espiritualidade sem dogma. Uma ética sem castigo. Uma humanidade que, enfim, ousa caminhar sem pastores.