Significados

A crença é um componente fundamental no desenvolvimento recente da humanidade (quando digo recente, me refiro aos últimos 10.000 anos, ou desde que o ser humano desenvolveu a agricultura e começou a se tornar uma civilização tecnológica). Em cada momento da história recente – para o bem ou para o mal – nossa realidade se moldou aos nossos anseios espirituais e ideológicos mais profundos. Sempre tivemos um desejo pelo entendimento dos porquês, uma atração irresistível pela subjetividade e pela transcendência. Construímos uma notória habilidade em significar as coisas imateriais em busca de um sentido metafísico para a existência.  

As palavras "signo" e "significado" compartilham a mesma etimologia, originando-se do termo latino "signum", que se traduz como "Marca Identificadora" ou "Sinal". A aplicação mais popular deste termo ocorre no contexto da astrologia, com a crença de que a vastidão do universo — abrangendo energia, matéria, espaço e tempo — está interconectada com o destino de cada indivíduo ("marcando-o" para um determinado caminho existencial). Essa concepção, hoje sabidamente enganosa, surgiu como um efeito colateral de nossa habilidade em reconhecer padrões - até quando estes não existem. O mais importante sobre a astrologia é entender que ela emergiu como uma forma desesperada de dar sentido ao acaso e de buscar uma antecipação determinista em meio à imprevisibilidade e indiferença cruéis do universo. A humanidade evoluiu, e nosso conhecimento sobre o cosmos, sobre a matéria, sobre a natureza das coisas, se expandiu. Mas ainda hoje, nos perguntamos sobre significados. 

Este anseio por significado, desde o início, também representou uma oportunidade para uma parcela da humanidade: a oportunidade de conquistar o poder e dominar. É fácil enxergar essa relação entre domínio e crença olhando para a história - impérios foram construídos sobre o pilar da religião e da ideologia. E o avanço das eras apurou e sofisticou essa relação estreita entre crença e poder.

Hoje nos defrontamos com signos da modernidade - e aqui não me refiro aos oráculos astrológicos, mas sim, à nossa busca por propósito em diferentes correntes filosóficas, ideologias e crenças modernas. Essa busca por significado cria um terreno fértil para este instinto antigo e primal da humanidade - o desejo por dominância. É prudente observar que a dominância não é uma exclusividade da espécie humana. Vemos isso em toda a natureza, espécies que lutam pela primazia, relações de poder e hierarquia em diferentes espécies. Parece que a busca do poder é um elo entre todos os seres gregários e sociais. 

Mas no ser humano, este instinto, associado à um sistema de crenças e à concepção de um mundo imaginado, elevou-se ao status de ambição - O homem se tornou um deus e ambiciona ser um deus.  A sua autoproclamada divindade é exercida no plano imaterial dos signos, simbolismos e marcas, que se conectam intimamente com os anseios existenciais da humanidade. É no campo simbólico, e não nas disputas físicas, que o homem fundamenta seu poder. Suas armas não são garras, dentes e músculos, mas narrativas. Narrativa é o controle do significado das coisas. É assim que a humanidade estabeleceu sua primazia (ao menos nas mentes humanas). 

Se a nossa aptidão para identificar padrões molda nossas crenças, o controle das narrativas transforma crenças em ferramentas de dominação em grande escala. O ato de significar serve como veículo para a mobilização. A árvore do conhecimento nos oferece a tentação de respostas fáceis à perguntas sem respostas. Isso se coloca acima da própria natureza das coisas reais, molda a realidade à luz das intenções dos poderes estabelecidos. 

Temos amplas evidências de que o avanço tecnológico e cultural da humanidade se apoiou na sua habilidade de estabelecer  e compartilhar crenças e significados em larga escala. Percebe-se, assim, que a significação é também uma fonte de poder. Ao mencionar crenças, não me refiro exclusivamente ao âmbito esotérico ou sobrenatural, como as entidades religiosas fazem com os mitos de Deus, Alá, Jeová, Zeus, Odin ou Fortuna. As ideologias seculares, que colocam o homem como figura central e essencial no universo, estabelecendo uma suposta supremacia humana como um direito divino - ou um direito natural, podem ser ainda mais poderosas e eficazes do que a religião e as mitologias.

Ao mesmo tempo que precisamos de crenças compartilhadas e globais para que instituições de governança, economias, corporações e estados-nações funcionem, esse mesmo tipo de crença representa uma oportunidade para que poucas pessoas exerçam grande influência no destino do mundo. E a forma de conquistar isso é a narrativa do significado.

O que é o significado para um ideólogo à direita ou à esquerda no espectro político? O que é significado para um crente nas doutrinas de Buda ou  um cristão? O que é significado para um agricultor ou um industrial? Cada arena ideológica é um espaço de conquista e um degrau de poder a ser ocupado.
 
A crença, apesar de sua natureza imaterial, possui a capacidade de influenciar e transformar o mundo material. Ela representa a transição do metafísico para o físico, efetivada através da intenção humana. E quanto maior a escala desta transposição, maior é a escala do poder alcançado. É aqui que encontramos terreno para a proverbial luta pelo poder supremo. Aqui o homem se torna Deus, o homem cria Deus à sua imagem. 

Pode-se pensar, com alguma ilusão forjada no método científico, que no domínio do real, não há espaço para narrativas, crenças ou propósitos; existe apenas aquilo que pode ser conhecido, alguns dizem. Mas isso é também uma falácia, em certo ponto, ingênua. Mesmo no campo da ciência, há uma infinidade de simplificações, aproximações, sínteses, modelos e arquétipos - no fim, não é tudo uma grande ilusão sensorial e uma interpretação enviesada do homem sobre o universo? Qual é o papel de nossos filtros e interfaces sensoriais e cognitivos na construção da nossa compreensão da realidade? Até onde vai a crença e onde começa o conhecimento de fato? O que é narrativa e o que é matéria? 

A humanidade não gosta de imprecisões, não gosta de mudar de ideia. Não gosta novas teorias. A humanidade anseia por verdades absolutas, confortáveis e seguras.

Existe um profundo contraste entre o que é real, o que é conhecido e o que é narrativo. As próprias limitações linguísticas de nossos idiomas criam camadas adicionais entre o real e o narrativo. Nossa mente cria artifícios para que essas dimensões se entrelacem e se fundam, formando uma amálgama da verdade pretendida - não a verdade real, mas a verdade intencional. É necessário uma grande força de vontade para não se perder nesta amálgama - algo que o método científico se propõe debilmente, como filosofia do conhecimento - é forte como modelo lógico - por que é honesto intelectualmente - mas sem apelo à psiquê humana, fortemente atraída pelo sobrenatural como explicação essencial, e ansiosa por verdades enlatadas e imutáveis. 

O fato é que o mundo não se move, em última instância, pelo conhecimento. O mundo se move, antes de tudo, pelo poder. O conhecimento é uma engrenagem, mas o interruptor que liga e desliga o motor  do conhecimento está na mão de quem controla as narrativas. Quer um exemplo disso? Nós temos a tecnologia para viajar até a lua desde a década de 60. Mas não foi a tecnologia que nos levou à lua. Foi a narrativa amalgamada à tecnologia - "precisamos vencer os comunistas". Essa narrativa foi suficiente para despejar quantidades obscenas de dinheiro (outra realidade imaginada da humanidade), ignorar os riscos óbvios, ignorar as limitações do conhecimento existente, e ignorar os obstáculos. E lá estava o homem na lua em 1969.

Hoje temos exponencialmente mais tecnologia do que nos anos 60, mas o caminho até a lua nunca foi tão longo. Nunca fomos além, não por falta de tecnologia, mas por que a narrativa mudou. O poder da narrativa e da significação mantem o verdadeiro conhecimento em suas rédeas curtas. O mesmo ímpeto que nos levou às estrelas, nos aprisiona neste mundo ambíguo e corrompido, com os pés presos ao chão.

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