A única coisa verdadeiramente divina

Fecho meus olhos, estendendo as mãos dormentes pelo frio através da janela, tocando o orvalho de uma folhagem que roça o vidro com o vento cortante. Meus pensamentos estão oscilantes, fugidios, opacos.

Movo meus dedos com dificuldade, como se tentasse executar uma escala frígia em um teclado feito de espírito e sentimentos. O som das notas mudas silencia a minha mente, de súbito.

A mera insinuação desta breve cadência que meu instinto compôs já é suficiente para organizar minhas sensações, trazendo um lenitivo para o pensamento quebrado. A música é cura.

A Sinfonia da vida pulsa com paixão, mas sabe ser calma, aplainando montes e vales, nivelando o terreno. Se há algo que é verdadeiramente metafísico no absurdo da existência é o poder que a música exerce sobre nossas pulsões. Esta é a única coisa realmente divina que eu conheço.

Como o formão, o cinzel e o martelo, com ritmo e som as notas de uma fuga esculpem o divino nas ondas que se propagam no ar e que se acolhem na alma. Uma escultura tão efêmera quanto eterna. Efêmera porque leva o tempo exato entre o vibrar das cordas até o tamborilar de nossos tímpanos. Mas eterna pois, uma vez sorvidas com fome e sede, saciam a alma de uma única vez e por toda a eternidade.

Se a matéria e a realidade são dadas por suas formas e estados — sólido, líquido, gasoso — seria a música o estado da alma? Seria a temperatura da música o agitar dos elementais do sobrenatural? Como pode um fenômeno físico tão banal quanto o som ter tamanho poder em revolucionar o humano?

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