Niilismo e entropia

Transvalorar – erigir valores através da superação da moral de escravos imposta pela história humana, baseada na crença metafísica de que o perfeito e o bom estão no limite além da vida. Uma busca condenada ao contínuo devir, ao quase, ao “logo ali” que nunca se concretiza. A recompensa na morte que aniquila e apequena a vida.

Nietzsche chamava isso de niilismo. Não no sentido comum em que usamos essa palavra – uma entrega aos prazeres pela negação de sentido – mas em um novo significado. Um niilismo que nega a vida pela busca de uma miragem pós-vida, de um paraíso infantil, uma recompensa após a morte. Ele via esse pensamento como uma atrocidade, um desperdício de uma existência, uma castração da potência da vida.

Na visão dele, o cristianismo, na cultura ocidental, forjou uma moral ressentida, que pune o prazer, que pune a potência, que desqualifica a busca da realização, e valoriza a humilhação, a passividade, a mansidão. E, com isso, perpetua a opressão, esmaga o desejo e aniquila a vontade. Uma moral instrumental, que vende um futuro ideal no pós-vida, e cega e escraviza as pessoas em sua condição histórica e em seu papel na hierarquia do mundo.

Foucault partiu da visão nietzschiana sobre a genealogia da moral e enxergou uma genealogia do poder a partir dessa mesma estrutura. Ele estudou como esses mecanismos existem de forma tão enraizada em nossa cultura, que, mesmo dentro de processos revolucionários onde se tentou romper com essa moral de escravos, o subproduto natural foi uma nova configuração dos mesmos valores, das mesmas hierarquias, dos mesmos institutos de opressão. Eu tenho me debruçado sobre isso há algum tempo, e tenho chamado isso de “padrão fractal” das estruturas de dominação. O fractal é um padrão matemático que se repete infinitamente nas micro e macroescalas. Você olha de longe ou de perto, e sempre vê o mesmo padrão. E se tenta quebrar ou superar, ele sempre retorna e assume a mesma forma — ou então se multiplica, como as serpentes da Hidra, que, quando cortadas, retornam em dobro.

Esse padrão fractal é um molde comportamental que sempre atua para fornecer estrutura para as relações de poder. Onde há meia dúzia de pessoas juntas agindo e cooperando, rapidamente se estabelecem os comportamentos estruturais de uma relação de poder. E, cedo ou tarde, você tem um líder e liderados “famintos” pela instrumentalidade.

Ou seja, a moral dos escravos é um sintoma de uma característica imanente das sociedades humanas — as relações de poder são o molde confortável das relações. E a oposição à instrumentalidade é um mecanismo que produz mais fractais, e mais ondulações sobre os mesmos moldes. É uma acomodação de baixa energia, e produz conforto — o gozo de ser instrumento é analgésico para a maior parte das pessoas. As convoluções que surgem pela dissidência de quem não cabe no papel instrumental são autorregulatórias, não para romper com o sistema, mas para proporcionar antifragilidade — para perpetuar.


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