utopia
Freud, numa troca de cartas com Einstein, um pouco antes da segunda guerra, disse não acreditar em qualquer forma de redenção para o homem. Para ele, a violência não é um desvio — é essência. Não é uma falha a ser corrigida com mais igualdade, mais abundância, mais justiça. Está inscrita nos ossos. Somos criaturas feitas para o confronto. O combate é a nossa gramática primitiva. Está no kernel.
É uma visão crua, vinda de alguém que passou a vida vasculhando os porões mais escuros da alma humana. E talvez tenha razão. O século XX inteiro parece uma confirmação de seu diagnóstico.
Ainda assim — e é aqui que me torno suspeito — há os que nadam contra a correnteza. Os poucos. Os dissidentes do instinto. Os otimistas, esses tolos perigosos que insistem em acreditar que o ser humano pode, de alguma forma, se reinventar. E o fazem não por ignorância, mas apesar de todo o horror. Sabem do abismo. Sentem o gosto do sangue na linguagem. Mas escolhem outra coisa. E por isso quase sempre são esmagados. A vida trata de abatê-los. De alisar suas arestas. De arrancar sua esperança com boletos, covardias cotidianas e estatísticas.
Mas ainda assim, e talvez só por isso, são eles que movem o mundo. Porque nenhuma mudança real jamais partiu de quem já desistiu. O progresso — o que tem alguma substância — começa com alguém que, contra todas as evidências, ainda vê algo que vale a pena ser salvo.
As utopias, é verdade, já serviram de rascunho para inúmeras distopias. Mas, de vez em quando, só de vez em quando, elas cumprem seu papel: não de nos levar a um paraíso, mas de nos lembrar que este inferno não é inevitável. Inspiram pequenas resistências. Pequenas recusas. Gente que decide tornar seu entorno um pouco menos miserável, um pouco menos desigual, um pouco menos egoísta.
E aí está o ponto. A tal da programação natural não é uma muralha. É um obstáculo — duro, insistente, sim — mas não intransponível. Está lá. Puxa. Sabota. Lateja. Mas pode ser superado. Já foi. Ainda é. E sempre que é, mesmo por um instante, algo de novo se anuncia no mundo.