Eu, inteiro – aos pedaços

Nossa cultura ocidental, forjada no cristianismo identitário, estruturada verticalmente – hierárquica, segmentada, segregada, desigual – criou em nós um molde antinatural, uma forma de homogeneização que nos mantém moldáveis, mansos e gregários. Esse molde tem um propósito funcional – é ele que mantém nossa estrutura social coesa, e é esse molde que imprime no nosso corpo os conectores, polias, roldanas e acionadores que nos inserem em um papel servil para que o mundo continue a girar pacificamente.

Esse papel forjado tem se perpetuado há tantas gerações que não nos damos conta de que esse molde nos adoece e nos separa do nosso potencial. Nos confundimos com nossa fantasia. Não nos percebemos como entes cheios de potência e vida, mas nos vemos como instrumentos e como funções.

É como se houvesse um campo de força, uma contenção que retém, desbasta, aplaina e dá forma a uma existência contida sob nossa pele. Pequenas válvulas, intencionalmente inseridas em momentos estratégicos, pequenas convulsões controladas e, na maior parte do tempo, a massa permanece inerte e moldável. E nós, voluntariamente, nos submetemos a uma ordem que anestesia nossa força de vontade.

Passamos a viver a vida de um personagem escrito por um autor muito ruim e perverso, e as cordas que nos movem são puxadas por marionetistas indiferentes ao espetáculo que estamos encenando – são os manipuladores e os espectadores de nosso espetáculo miserável, e nem sequer estão prestando atenção. Carl Jung compreendeu essa realidade ao propor o processo que denominou de individuação, em que cada um de nós aprende, lentamente, ao longo de toda uma vida, a reconhecer as cordas e a nos distanciar do personagem para nos tornarmos quem nós realmente somos – não sem conflito, dor e, muitas vezes, negação e um retorno ao vazio de nossas personagens.

Nosso corpo tenta, desesperadamente, nos acordar deste pesadelo – nossos sonhos tentam abrir frestas, expor cicatrizes abertas e feridas infectadas; nosso inconsciente tenta provocar, somaticamente, um choque que nos acorde, mas permanecemos em torpor – sufocamos esses lampejos da realidade com distração, ocultamos nossas febres e nossa taquicardia com consumo e fetiches, enterramos nossa melancolia com pílulas. E, todos os dias, criamos pequenas armadilhas mentais que colocam nossa vontade presa em um labirinto de ideologias, crenças limitadoras, autoengano e autoindulgência.

É uma espiral, recursiva e fractal, que aprisiona a humanidade em uma representação tosca, medíocre, feia e triste. Não triste como um drama lírico, denso e reflexivo... triste como quando vemos alguém de quem gostamos passando por um grande vexame, um constrangimento público. Sem lições de moral, sem redenção. É isso que a humanidade, no ápice de sua história, se tornou: uma espécie constrangedora.

Mas vamos encarar uma perspectiva alternativa. Todas as peças estão ali, esse quebra-cabeças aparentemente sem solução, na verdade, está apenas desorganizado e espalhado. A humanidade ainda pode se erguer e romper essa fractalidade alienante. Há quem possa romper as cordas, expulsar os marionetistas do palco, rasgar as cortinas deste teatro de misérias e abrir as janelas deste teatro tétrico, bolorento e escuro, para que o sol irradie o ambiente. Há um caminho no qual a humanidade pode aprender a se reintegrar, onde essa semente que existe dentro de cada um de nós possa florescer.

Esse caminho é a verdade. Não a verdade de uma crença. Não a verdade da fé. Não a verdade de uma ideologia. Mas a verdade de nossos corações. Todos nós temos uma semente da verdade dentro de nós – a nossa verdade. Sobre o que desejamos. Sobre o que queremos ser. Sobre o que queremos viver. O acesso a essa verdade é cheio de pequenas armadilhas autoimpostas, algumas culturais, outras por mera autossabotagem. Mas essa verdade existe, e nossa mente está tentando trazê-la à tona todos os dias. Aquele incômodo que está preso em nossa garganta, aquele pensamento que evitamos deixar vir à tona, aquele sonho estranho e recorrente que você, sem saber como, entende – são todos sinais de que a nossa verdade deseja emergir. E nossas crenças limitantes são a antítese dessa verdade. Subvertem, apodrecem e se apropriam dessa verdade, criando projeções grotescas para canalizar nossa vontade, nos mantendo cativos.

Eu vivi uma parte considerável de minha vida cativo sob crenças que minha cultura e minhas origens me impuseram, e que eu, posteriormente, devidamente adestrado, mantive e reforcei. Mas minha sede de luz e minha verdade interior prevaleceram. Não sem um doloroso processo de cura e cicatrização, mas, no fim, minha verdade me salvou. Minha verdade me libertou. O meu caminho serviu apenas a mim, e cada pessoa que tem essa mesma sede de luz deve encontrar seu acesso à sua verdade. Suas crenças tentarão sabotar essa jornada – surgirão falsos profetas arguindo: “eu sou a verdade”. Não acredite, nem por um segundo. A verdade nunca existirá fora de você. Ninguém pode ceder, vender ou emprestar sua verdade a alguém. Ninguém pode transferir sua verdade a outrem. É uma jornada absolutamente e necessariamente solitária.

Esse quebra-cabeças espalhado sobre a mesa que é você não pode ser montado ou organizado por outras pessoas. Você é a única pessoa capaz de encontrar os padrões, encaixar as peças e formar a imagem de sua completude, de transformar potencial em forma e calor. E sempre haverá luta no processo. Uma luta dura, frequentemente injusta, amarga e sem tréguas. Uma batalha pela sua vida plena, em que a única derrota verdadeira não é a morte ou a queda, mas a capitulação. Enquanto você permanecer lutando, esperneando, desferindo golpes, mesmo que no chão, mesmo que com as botas do opressor pisando sua garganta, mesmo que com a espada do inimigo em sua fronte, você estará em vantagem. E o momento em que a sua verdade se desnudar diante dos seus olhos será o momento em que o seu corpo se desvencilhará dos grilhões de uma existência fractal e subjugada.

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