Corpos
Há um tempo, ouvi, não sei onde, não sei de quem, que o corpo humano é uma “máquina de sobrevivência”. Não gosto de comparar a vida com máquinas. Não é uma comparação justa nem correta.
A vida é uma singularidade do universo, um fruto do caos maravilhoso que forja coisas monstruosas como estrelas, planetas, cometas, e também algo sutil e frágil como uma tulipa, um colibri ou uma minhoca. O incansável escultor da vida é o antiquíssimo tempo. Relações de causa e efeito infinitas, como uma mesa de bilhar do tamanho do universo, com quintilhões de bolas colidindo umas com as outras por éons incontáveis. Há algo de muito mais poético, profundamente estético, na forma como a vida brotou, como se fosse inevitável.
Para uma vida, humana ou não, não há peças de reposição, não há uma fábrica manufaturando corpos com peças padronizadas, cores de uma paleta estática; não há um projeto de engenharia, uma linha de montagem, processos produtivos, hierarquias corporativas, classes, equipes, supervisores. Uma vida não tem garantia de fábrica. Não há um departamento de contabilidade registrando cada corpo como um ativo, um item de estoque; não há selo nem registro patrimonial.
Há apenas o fruto caótico de duas vidas que se conjugam, que se roçam, que se penetram e que se somam em uma aposta sensual, jogando dados para que o próprio universo inicie um pequeno vórtice na tempestade caótica da existência, dando ignição a mais uma vida. Nada é mais oposto a uma máquina. Máquinas são bestas intencionais, primitivas e desengonçadas tentativas do homem de criar algo, de erigir suas próprias criaturas, de controlar a entropia inevitável.
A vida é algo muito mais sutil. É tão intencional quanto jogar uma moeda para o alto e esperar que caia com a face da coroa para cima. Não há qualquer controle. Podemos apenas acompanhar e observar a natureza forjando sua obra-prima, mas não há escolhas depois que os dados são jogados.
Nosso corpo não é nem máquina, tampouco feito para a sobrevivência. Nosso corpo é uma obra de arte para o deleite de existir, contra todas as probabilidades, em um universo que pode nos destruir em um segundo. Apreciar o infinito é o propósito dos nossos corpos. Sobrevivência é insuficiente. Somos centelhas e somos o apagar de uma chama. Somos olhos para apreender, cérebros para compreender, corações para percutir, mãos para erigir, pés para correr. E somos também espírito — para amar e para imaginar.